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O Evangelho Segundo os Violeiros

por Carlos Alberto Rodrigues Alves*

“Prepare o teu coração pras coisas que eu vou contar eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão...” (T. Barros/G. Vandré)

 

PRA COMEÇAR A PROSEAR

Sou violeiro nas horas vagas. De quando em vez, principalmente naqueles momentos em que os demônios da cidade-grande me assaltam, deixo sair das cordas da viola um cenário bucólico, quase extinto, mas santificado pelos cantadores. O ar puro das invernadas com cabras pastando solenemente, os carros de boi gemendo no estradão, o fogão de lenha onde o café é adoçado com garapa. Com alguns ponteados a mais, começam também a sair do pinho cenas de manhãs solfejadas por pássaros, cafezais em flor se vestindo como noivas, currais com afrodisíacos cheiros de bosta de vaca e rios com molecada nadando do jeito que veio ao nosso-mundo-sem-porteira.

 

Confesso que, com minhas toadas inspiradas nestes motes, consigo despertar coisas belas e adormecidas neste corpo oprimido. Consigo também exorcizar, temporariamente, o Cão em suas multiformes aparições. Consigo, ainda, sorrir com esperança, cantarolando um salmo em som de cateretê que aprendi do Rolando Boldrin: “Eu vim me embora e na hora cantou um passarinho, porque eu vim sozinho, eu, a viola e Deus ...Vim parando assustado espantado com as pedras do caminho, eu , a viola e Deus... ”

 

Sou violeiro nas horas de Deus, amém! Nascido na beira daquela tuia cantada por Tonico e Tinoco, aprendi que é impossível dissociar viola do sertão.

 

O VIOLEIRO

As modas caipiras e o sagrado nasceram juntos nesta terra-de-santa-cruz. Dizem os historiadores que a viola foi trazida para cá pelos jesuítas, o que de início já lhe confere a aura beatificada. Desde os tempos primevos, encontrou guarida naquela gente nova que se miscigenava pela santíssima trindade racial: o índio, o branco e o negro. Nasceu assim, o violeiro em sua mais completa tradução, que de cedo aprendeu a fazer das folias, dos catiras, dos fandangos, dos lundus, dos pagodes, das toadas, dos cururus e dos cateretês uma ópera sertaneja ao Divino, à Mãe do Salvador e aos Santos do cotidiano. Como referencial teológico destas dramatizadas melodias o caboclo adotou a visão do catolicismo oficial. Por outro lado, no entanto, suas epifanias sonoro-dançantes incorporaram, aos poucos, uma religiosidade que não ficava dependente da explicação racional de padres ou especialistas da fé. Um dos exemplos clássicos dessa devoção é a fervorosa, doutrinária e popular oração cantada e socializada pelos cururueiros paulistas. Música que foi recolhida por Paulo Vanzolini e que hoje faz sucesso com a Orquestra Paulistana de Viola:

 

Este é o primeiro verso
que nesta casa eu canto
Já desponta a madrugada
Padre , Filho, Espírito Santo
Ora viva São Gonçalo (...)
Este é o segundo verso
Que nesta casa eu canto
Já desponta a madrugada
Padre, Filho, Espírito Santo
Ora viva São Gonçalo(...)

Várias outras pérolas deste gênero de manifestação religiosa chegaram até nós e hoje fazem parte do nosso cantorio. A Bandeira do Divino e Cálix Bento, músicas de domínio público, eternizadas por Ivan Lins e Milton Nascimento, são apenas dois exemplos. Som rural da mais pura cepa!


Mas a moda do violeiro tem o toque do sagrado porque sagrada é a vida do caipira. Coisa que souberam retratar Cornélio Pires e Angelino de Oliveira, pioneiros das modas fonográficas, em cenas lítero-musicais históricas. Sagrado é o chão onde o Jeca-Tatu pisa. Sagrado é o seu jeito de ser. É neste cenário que o profano se santifica e o sagrado se profaniza. Ele canta a sua maneira de levar a vida. Expressa bem esta harmonia paradisíaca a música “Meu céu” dos mineiros Zé Mulato e Xavantinho:

Armo a rede na varanda afino minha viola
Sabiá canta comigo mando a tristeza embora
No lugar aonde eu moro solidão não me amola
Quando eu faço um ponteado a cabocla cantarola

Não é o céu conforme eu aprendi
Mas se Deus achar por bem
Pode me deixar aqui

O povo da roça não tem esta pressa de viver que nós temos. Um amigo ilustrou bem: “Nós trabalhamos para comprar o que precisamos para viver depressa. Eles vivem basicamente para fazer o que precisam para viver com calma”. Na roça, seguindo o ritmo das estações, do riozinho e do eterno ciclo da natureza, tudo é devagar. Como devagar também é que se envelhecem e enobrecem, no tempo, os bons vinhos. Como devagar também é que envelhecem e enobrecem, no mato, as boas madeiras com as quais meu se faz boas violas.

DEUS E O DIABO NA TERRA DOS VIOLEIROS


Mas há uma outra pitadinha do sagrado que precisamos colocar neste proseio. Não podemos perambular pelos sertões e veredas do sagrado sem recebermos a bênção do Riobaldo: “Medo, mistério. O Senhor não vê? O que não é Deus é estado de demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver”. Este personagem de Guimarães Rosa dá o tom de um outro tema que está nestas modas. Falo do tema de uma peleja cósmica. Quando Deus e o diabo travam peleja estremecendo esta terra de sol e de chuva, há sempre um violeiro para harpejar o confronto. Este duelo celeste tem ecos em desafios terrestres. Há quem jura de pé junto que violeiro bom é aquele que fez pacto com o Coisa-ruim. Dizem que são aqueles que tocam em uma afinação chamada “rio abaixo”. Referência ao tinhoso que um dia teria aparecido tocando viola, com virtuosismo, lá pelas águas sertanejas do norte das Gerais. Até existe, por aquelas bandas, um bocado de causos que falam sobre viola tocando sozinho em cima de mesas. Eu, heim? Minha afinação é o “cebolão. Tem esse nome porque faz gente, do campo e da cidade, chorar. Sou da turma do São Gonçalo, o padroeiro dos violeiros! Santo bom este! Adorado por Tião Carreiro e Pardinho, reis do pagode, que , em vários de seus sucessos fonográficos, nos alertam a uma tomada de partido nesta eterna luta do bem contra o mal:

Quem foi o rei do baralho virou trouxa na roleta
Gavião que pegava cobra, já foge de borboleta
Se o Picasso fosse vivo ia pintar tabuleta
Bezerrada de gravata que se cuide não se meta
Quem mamava no governo agora secou a teta
A coisa tá feia, a coisa ta preta...
Quem não for filho de Deus, tá na unha do capeta.

Meus dois dedos de prosa “vão se sumindo como as águas vão pro mar”. Mas as coisas do sagrado não. Quem se embrenha por esta floresta cultural sabe que o imaginário e as crenças do “caipira-pira-pora” são um infinito de sabedoria. São atitudes frente à vida, resistência diante das “crises e cruzes” existenciais, criatividade face aos improvisos do cotidiano, sentimento de finitude diante dos enigmas do amor e da morte, encanto pelo sagrado... O sertão não tem fim. Não tem fim seus causos, sua mística, suas inventivas esperanças. Por isso há muita gente boa pegando este “trenzinho do caipira” para resgatar um pouco da riqueza da verdadeira cultura raiz. Estamos em boa companhia. Violeiros , folcloristas e pesquisadores como Roberto Correa (professor de viola na Universidade Federal de Brasília), Ivan Vilela, Paulo Freire (o violeiro), Braz da Viola, Almir Sater, Inezita Barroso, Rolando Boldrin, Renato Teixeira e mais uma “comitiva da esperança” está engajada nesta romaria “de sonho e de pó” , em busca deste cálice sagrado. Por isso e por tantos ponteios que fazem variações sobre a vida e a morte é que eu faço minha final louvação: Viva o sagrado som rural! Viva o nosso santo “forcrório”! Viva os sacerdotes da viola!

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*Carlos Alberto Rodrigues Alves é Conselheiro do Conselho Estadual do Paraná, Teólogo , Músico, Violeiro e Professor Universitário em Curitiba/PR.

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